A vida é difícil.
Não vou enganar ninguém. E também não vou aligeirar os factos, a começar porque
a taxa de mortalidade infantil é um daqueles indicadores que revelam em que tipo
de país se acabou de cair. E não é só cair num país mais bem preparado, para receber
crianças, é preciso uma sorte FDP para, em primeiro lugar, cair numa família
preparada para ter crianças.
Assim, a questão
de sobrevivermos aos primeiros anos de vida é, já por si, um feito.
Ainda bem que não
estamos sozinhos no mundo. E esta é uma das coisas que aprendi bem cedo é que tudo na vida tem mais piada quando se
experimenta acompanhado, ou quando temos alguém com quem partilhar.
E voltamos ao
princípio. Como é que cheguei a esta conclusão?
Foi no verão passado que eu e os meus amigos estávamos deitados numa praia,
tínhamos bebido fixxe e fumado o que havia. Ou teria sido o contrário? Fumámos
fixxe e bebemos o que havia? Ninguém se lembra. Mas o que recordo é que a minha
amiga Rita queria abraçar pessoas e eu avisei-a: “tem cuidado, com essa merda
dos afectos, olha que ainda vomitas em cima de alguém todo esse carinho.” Dito e
feito, a Rita estragou-nos o verão. Ninguém se aproximou de nós o verão
inteiro.
E foi nesse verão que pensei o que seria da minha vida, ou o que seria a
vida de uma pessoa, se estivesse só no mundo. Alguém que não tenha com quem
partilhar.
Reflecti sobre a vida, e conclui que tudo na vida é melhor acompanhado.
Reflecti melhor e conclui que tudo é melhor acompanhado excepto quando se trata
de mau sexo. Nessa situação o melhor é fazer sexo sozinho, é menos
constrangedor.
E isso levou-me a outra questão. De
que maneira posso explicar conceitos a crianças, quando estas ainda não têm maturidade
para os entender. Como explicar a importância de fugir à morte, ou ter bom
sexo, quando o mais importante, na infância, é chegar ao fim do dia sem ser
apanhado a comer macacos do nariz?
E foi assim que pensei que tinha que simplificar as explicações. Porque as crianças
não têm tempo para a complexidade da vida.
1ª – 2ª E 3ª INFÂNCIA
A infância é determinante no tipo de adulto que nos vamos transformar. E
vocês já estão a pensar “eh que exagerada!” Mas acompanhem-me nos exemplos mediáticos
Ana Malhoa, Bruno de Carvalho, Gustavo Santos e por aí adiante. Convencidos agora?
É na infância que descobrimos se vamos fazer parte do gang ou se vamos ser roubados por ele.
É em casa que nos preparamos para o que vem aí. É muito importante conhecer
os adultos que irão cuidar de nós, os pais. Eles são a chave para tudo. E há
pais para tudo.
Os-pais-que-não-batem-não-gritam-e-raramente-se-irritam.
Estes são pais que dizem orgulhosamente: “nunca bati no meu filho”. Com
estes pais não precisas de te preocupar com o material do calçado que tens em
casa, nem em esconder objectos cortantes e pontiagudos. Mas não penses que não
vais apanhar porque vais, só que não é dos teus pais.
Os-pais-cães-de-guarda.
Este tipo de pais protectores pode envergonhar-nos, mas também pode
salvar-nos de outras pessoas chatas como eles. Não há muita coisa que se possa
fazer para contrariar o instinto de protecção, e com este tipo de pais o melhor
que pode acontecer é a chegada de vários irmãos.
Os-pais-acho-que-me-esqueci-de-alguma-coisa.
São aqueles pais que não querem saber. São distraídos e irão esquecer-te
frequentemente, mas não é por mal.
Esquecem-se de usar roupa. Dos nossos nomes. Da cara dos nossos amigos. De
fazer comida. Do banho. De nos deixar na escola e até de nos irem lá buscar.
Os-pais-estás-aqui-estás-a-apanhar.
Estes pais ameaçam e batem. Pensam que só aprendes a apanhar. E com estes
não há muito a fazer. Basicamente o caminho é sair de casa enquanto a maioria
dos órgãos do corpo ainda não faleceram e ainda temos a dentição completa.
Os-pais-que-têm-uma-história-para-tudo
Estes, como o título bem os descreve, são aqueles pais que contextualizam
tudo com algo que lhes aconteceu: “então e a mim? Devias ter visto quando eu
tinha a tua idade”; “com a tua idade já voava, falava três línguas e mantinha
dois part-time de 8 horas cada”.
Não te preocupes serás um falhado e um inútil, mas não serás o único lá em
casa.
Os-pais-então-e-o-meu-filho?
Como a própria designação indica são aqueles pais que quando alguém fala
dos seus filhos, respondem “então e o meu filho?”. Basicamente tratam-se de
pais de crianças que aos 5 anos falam 5 idiomas, jogam xadrez, tocam piano, e já
leram os sete volumes "Em busca do tempo Perdido", de Marcel Proust, duas vezes!
Este é o meu tipo de pais preferido, confesso, com eles não precisamos de
nos esforçar muito. Já somos os maiores, mesmo quando somos os mais baixos da
sala.
Conhecer bem estes estes adultos é uma estratégia de sobrevivência, mas não
é única.
O facto de ter crescido na Amadora preparou-me para os desafios da vida. Retive os melhores ensinamentos para poder partilhar; e extraordinariamente estes ensinamentos são replicáveis em qualquer local do mundo, e válidos para todas as crianças. Chamei aos meus ensinamentos “os dez mandamentos” podiam ser mais, mas na altura que os escrevi só tinha um talão do supermercado à mão, e tinha sido uma compra pequena.
O facto de ter crescido na Amadora preparou-me para os desafios da vida. Retive os melhores ensinamentos para poder partilhar; e extraordinariamente estes ensinamentos são replicáveis em qualquer local do mundo, e válidos para todas as crianças. Chamei aos meus ensinamentos “os dez mandamentos” podiam ser mais, mas na altura que os escrevi só tinha um talão do supermercado à mão, e tinha sido uma compra pequena.
OS 10 MANDAMENTOS
1 º Mandamento: “Conhece-te
bem”
Facilita imenso
nascer inteligente, mas este pode não ser o nosso caso.
Deixo alguns
conselhos úteis para ultrapassar aquelas que podem ser as nossas limitações.
É muito
importante ver bem porque sem este sentido minimamente desenvolvido podemos facilmente
morrer atropelados por um carro, por um triciclo ou de humilhação diária. Somos considerados burros porque não conseguimos
ver um boi do que a professora escreve e a alternativa é usar óculos. Não interessa
que modelos de óculos que vamos usar porque nenhum resiste ao murro do Jójó.
Outra limitação
pode ser a roupa que os nossos pais escolhem para vestirmos, e já é tarde para
mudar de pais, a minha sugestão é chutar pedras, aproveitar todos os arames e
paredes para nos esfregarmos. Comigo também resultou colar pastilhas elásticas
em calças, fatos-de-treino e outros pedaços de pano aos quais nunca pude chamar roupa.
E por último, o
penteado que os nossos pais nos fazem, ou pior que pagam para nos fazerem. O
corte de cabelo é determinante para o nosso futuro. Corte de cabelo como “cabeça
de tigela ou de capacete”, “cabelos com peidos” (remoinhos são FDP), caspa às
camadas, cabelo oleoso próprio para fritos, e o mais piroso de todos… o risco
ao meio. O pior de tudo é que mesmo
quando fizerem parte do passado haverá sempre alguém que o irá recordar. A estratégia
para sobreviver é conhecer-se a si o próprio, o seu cabelo, os seus pais e muito
importante quem são os maiores piolhosos do sítio. Não há cabelo que sobreviva a uma
praga de piolhos. Palavra de Marta!
2 º Mandamento: “Não serás filho único”
Este é talvez o mandamento mais difícil porque é difícil partilhar os
brinquedos, as atenções, o lugar no sofá e o comando da televisão, no entanto acho
que é sábio. Com um irmão nunca estamos sós, para o bem e para o mal. Ele pode
ser nosso cúmplice, mas também pode ser a nossa vítima. Com um irmão perto há
sempre alguém a quem deitar a culpa.
Se for um irmão mais velho podemos usá-lo, fora de casa, para nos
protegermos: “olha que vou dizer ao meu irmão mais velho e ele vai partir-te a
boca (TODAAA).” Mesmo quando o nosso irmão mais velho é o primeiro a bater-nos.
Ter um irmão/irmã traz outros benefícios, por exemplo usar as roupas deles.
Não que saiba de experiência própria, mas é importante que eles NUNCA descubram
que vestimos a sua roupa. Que lhe colocamos nódoas, que a rasgámos, ou até que
perdemos aquele casaco de ganga da Levis … eles não podem desconfiar, NUNCA.
E porque sem um irmão temos menos uma desculpa para culpar os nossos pais,
menos assuntos na consulta de psiquiatria e menos histórias para recordar.
3 º Mandamento: “Diz-me do que gostas que eu amanhã trago”
“Queres ser meu amigo?” Pode resultar em Telheiras, mas na Amadora não
resulta. Alguma criança que diga isso está sujeito a apanhar forte e feio e à
frente de todos. Na Amadora o que funciona é o suborno, mas subtil. Deves saber
o que é que os "maus" gostam e como se tratasse de um altar deves deixar a tua
oferenda para acalmar a ira destas feras, sempre, até eles te ignorarem.
Fingir que era autista ou que tinha epilepsia também resultou.
4 º Mandamento: “Escolhe bem os teus amigos”
Outras dicas para sobreviver à infância é nunca estar só, ficar em
locais iluminados e evitar atalhos.
Seguem alguns truques que nos mantêm sãos e salvos: no berçário não
trocamos a chucha, na creche não aceitamos viroses e outras maleitas; e na primária
escolhemos para nossos amigos os miúdos mais fortes , e os maiores da sala.
É tudo uma questão de sobrevivência. E o segredo é não apanhares porque
estavas a olhar ou mesmo a jeito para apanhares.
5 º Mandamento: “Aprende a correr”
Correr sem olhar para trás. Quando és bebé as pessoas estão muito ansiosas
pelo dia em que começas a andar, mas isto está tudo errado. Se andares quando
te encurralam para te roubar, já foste!
Hoje seria mais saudável se tivesse corrido sempre que aqueles grupos de
miúdos me perseguiam para apalparem. Mas como já dei a entender este sempre foi
o meu ponto fraco. Putos aprendam com os meus erros!
6 º Mandamento: “obrigada e desculpe são duas palavras”
Foca-te nisso. Não te deixes formatar. Estas palavras são incontornáveis
todos vão querer ouvir-te dizê-las e existirão momentos que parece que a tua
vida depende disso. Mas todos sabemos que as desculpas evitam-se, e ser
obrigada a agradecer é ridículo.
Deixa-te de merdas e não tentes agradar. Não é assim que gostam mais de ti.
Nestes anos de vida que levo nunca ninguém me disse: “eh pá gostava que aquele
tipo me fizesse um filho porque ele é tão educado, antes de me penetrar pede
por favor, durante pede-me desculpa pelo incómodo causado, e no fim agradece-me
sempre”. Não, isto nunca aconteceu, nem durante as maiores bebedeiras!
7 º Mandamento: “o karaté não te serve de nada o que conta é a velocidade”
O karaté não serve para nada quando eles são 10 e tu estás sozinho por isso
quando os teus pais decidirem qual a actividade que deves frequentar, não te
esqueças que Portugal teve campeões mundiais de atletismo e no Karaté estamos
sempre a apanhar.
8 º Mandamento: “Não te deixes apanhar”
Podes comer macacos directamente do nariz, fazer xixi na cama até à
adolescência, ou até mentir, mas o importante é que não seres apanhado. Vai haver
sempre alguém que irá relembrar que o fizeste, e uma vez na net deixaste de ter
futuro.
9 º Mandamento: “o meu clube é o mesmo que o do Jójó”
O Jójó era o tipo que todos conhecíamos de nome, e que não queríamos
conhecer pessoalmente porque já sabíamos que nunca mais iríamos esquecer esse
momento. E não era porque ele era o
homem dos nossos sonhos… é porque com ele acabávamos sempre a pedir clemência: “Jójó
fica com o dinheiro e com o pão que estava a comer, mas deixa-me vivo e deixa-me
ficar com os dentes da frente”.
10 º Mandamento: “O tamanho não conta.”
Primeira coisa que aprendemos é que o tamanho não conta, o que conta é a
atitude. É este pensamento que nos vai manter vivos na prisão. Sim, mesmo os
betos do CDS e do PSD da Amadora sabem isso. E também sabemos que acabaremos
presos um dia, obviamente por diferentes tipos de crimes. Mas a prisão está no
nosso futuro. Prisão a um partido político, a horários, a rotinas. A atitude é
o que conta na estrada, nas relações, na vida.
É importante entender que enquanto evitamos a prisão, estamos a fugir à
morte e se conseguimos sobreviver aos nossos pais, ao Jójó, e à infância,
existem grandes probabilidades de fazer isto mais uns dias.
Fugir à morte durante a infância,
sem saber que é disso que se trata, prepara-nos para as próximas etapas da
vida. Se chegámos à fase seguinte da vida é porque isto está a correr bem.
Espero que possam utilizar estes conselhos com filhos, netos, primos,
sobrinhos, amigos, filhos de amigos, irmãos mais velhos, e outras pessoas que
ainda não tenham percebido que quando tudo falha, a única fórmula que resulta é
correr, mas no sentido correto.
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