CAPITULO III - Kit de sobrevivência.
Como é sabido, fugir à morte todos os dias cansa, mas é a única opção que temos. Para facilitar esta árdua tarefa, devemos ter connosco um conjunto de ferramentas essenciais e simples, tais como: calçado porque correr descalço, na calçada ou no alcatrão, dói para caraças; falta de noção, ser inconveniente protege-nos, as pessoas receiam-nos e por isso deixamos de participar em eventos que nos envelhecem; a vergonha, o pudor coíbe e coibir é mau, é logo um verbo difícil de conjugar e depois faz-nos acreditar em mitos, tal como o papel de uma senhora – aquilo que é permitido fazer ou dizer – a vergonha limita. Abaixo a vergonha!
Existem, outras ferramentas, mas não tão importantes como o bom calçado, que também facilitam a vida: um alguém ; um local físico e um espaço não físico.
Desde bem cedo, que senti na pele que não se pode/deve dizer tudo o que se pensa. Aprendi esta lição de várias formas, ora porque apanhava, ora porque ficava de castigo, ora porque era convidada a sair da sala de aula. Demorou, algum tempo para aqui chegar, mas percebi que cantarolar uma música ou declamar um poema mentalmente, não ofende ninguém e é de grande ajuda para manter o silêncio e a saúde mental e foi, assim, com prazer que dei os primeiros passos na memorização, neste espaço não físico exerço o meu direito à liberdade de expressão.
Também percebi que era importante ter um esconderijo e apesar de ter crescido numa casa com um sótão, o local físico onde me refugiava era a casa de banho, era neste local, com ou sem necessidades urgentes e inadiáveis, que me escondia, ou para não pôr a mesa ou para fugir a qualquer coisa. Confesso, que depois de ter descoberto este paraíso nunca mais o larguei, atualmente frequento-o, mas lamentavelmente sem tanta privacidade porque as crianças, esses seres selvagens e egoístas, não respeitam nada, nem ninguém.
Quanto ao alguém, e sabemos bem que às vezes mais vale só do que mal-acompanhado, esse alguém tem de ser de confiança porque é com quem despejamos a nossa carga e sabemos que esta carga pode ser pesada, mas também pode ser de porcelana. Por esta razão, é importante uma boa seleção de um ou vários amigo(s). Sabemos bem que manter um amigo dá trabalho e consome muito tempo, imaginem vários, por isso, sejam poucos, mas bons.
Pelo contrário, não ter amigos é dispendioso, mais cedo ou mais tarde gasta-se uma fortuna em psicoterapia, psicanálise, psicotrópicos, antidepressivos, reguladores de humor, detetives, em pessoas que contratamos para bater em alguém, sexo pago, etc.
Por isso, se querem manter um, ou vários amigos na vossa vida, arranjem tempo e preocupem-se, os amigos são como os tamagochi, temos de cuidar deles, e manter as suas necessidades básicas satisfeitas, e de vez em quando, ou frequentemente, desligá-los.
Se não tivesse descoberto o papel fundamental dos amigos na vida, como é que teria chegado aqui? Quem é que tinha?
- Corroborado a minha história, junto dos meus pais, para passar a noite fora ou ficar na rua depois da hora marcada?
- Emprestado um alguidar para vomitar?
- Emprestado as chaves de sua casa?
- Riscado o carro do ex.?
- Usado como desculpa para dizer que os cigarros não eram meus?
- Ajudado a despejar a roupa do ex-companheiro pela janela?
- Dito a coisa mais estúpida, que fez soltar uma ou muitas gotas de xixi, de tanto rir?
Esta tribo a que chamamos amigos, são comunidades peculiares, que identificamos conforme o momento:
Amigos super-heróis, quase nunca estão presentes, mas sabemos que se precisarmos eles aparecem para lutar contra o mal;
Amigos interesseiros, que, como o adjetivo indica, têm interesse em alguma coisa, no meu caso, quase sempre é para conhecer os meus irmãos mais velhos porque, como todos sabem, não tenho dinheiro para emprestar. Estes amigos, são muitas vezes uma boa surpresa.
Amigos peregrinos, caminham lado a lado, nos bons momentos são cúmplices e nos maus bocados fazem-nos prometer que não voltamos a cair no mesmo erro. Estamos sempre a pagar promessas: "se me livrar disto eu juro que..."; "depois desta, eu juro que não volto a fazer…" e eles estarão lá para cobrar.
Amigos da farra, aqueles que onde quer que estejamos, seja no Rookie ou num velório, eles sempre sabem como animar a malta.
Amigos CM , que nos trazem sempre as últimas novidades.
Amigos "eu avisei", são muito maduros, quase sempre têm razão, são como uma bússola, dão imenso jeito para nos orientar e conseguem ser muito irritantes.
Amigos "não fui eu", Aqueles que nunca têm culpa, que não fizeram nada, que não perceberam, que não tiveram a intenção e que não compreendemos bem. Com estes crescemos imenso porque nos preparam para os "FDP" da vida.
Amigos "precisas de uma mãozinha", aqueles que nos desafiam e nos atiram para o precipício, não têm uma, têm duas mãos e são super-rápidos a usá-laaaaaaaaas!!!!
Amigos, amigos de todas as cores e formas, quem os tem, sabe que esta comunidade de seres pode ser tudo num só, pode ser isto tudo e muito mais, e só depende do momento, do que beberam ou fumaram.
A este propósito, vou falar-vos de uma amiga que me tem acompanhado. Recordam-se da Rita? Como devem imaginar, ela não ajuda a carregar merdas de ninguém e por isso ensina-nos a transportar o essencial.
A Rita, é licenciada em engenharia civil, e sempre soube que queria ser engenheira, não porque gostasse de qualquer tipo de engenharia, mas porque segundo ela, estes tipos de Faculdades tinham maioritariamente turmas masculinas.
A primeira vez que partilhou isto comigo, os meus olhos encheram-se de lágrimas e com orgulho, disse-lhe: “És um génio! Depois apresentas-me os teus colegas?”
Ela abanou a cabeça e respondeu: "Não contes comigo, tens de te fazer à vida, vou estudar o homem-macho, descobrir por que raio é que eles se julgam melhores que as mulheres."
Eu, estaria em pânico se fosse um rapaz em engenharia.
No final do 1º ano a Rita já tinha as conclusões do seu estudo, utilizou diversos métodos e, no fim, organizou um jantar para defender a sua tese.
Lá fomos nós, para a nossa tasca, na Calçada da Bica, e a Rita começou por dizer que aquela presunção masculina era alimentada pelas mães, as avós, as irmãs e as namoradas, enfim pelas mulheres.
Escolheu alguns colegas para observação direta, chegou a namorar com um ou outro, ou vários e em simultâneo, e o motivo pelo qual terminou as relações foi sempre o mesmo, o protecionismo matriarcal e concluiu em tom de ameaça, que se apanhasse alguma de nós, suas amigas, a desculpar um abuso ou um mal trato de um homem, ou até de outra mulher, seríamos obrigadas a abastecer o frigorífico de sua casa com álcool, durante um ano. Tivemos de ter muito cuidado porque nenhuma de nós ganha assim tanto dinheiro.
Já aconteceu uma de nós descair-se e partilhar algo que nos punha num grande sarilho com ela, mas isto acontece porque a Rita é matreira, é aquela pessoa que cria uma zona de conforto e confiança, que nos põe à vontade e depois lixa-nos a cabeça. Prepara-nos para a vida.
Uma vez contou-nos que um familiar de um ex-namorado lhe disse: "Desde que vocês andam juntos que ele está magro, deves ser uma cozinheira muito ruim..." ao que ela respondeu "FDS, que comida?!? Eu só ando com ele pelo sexo!"
Nós, reconhecíamos aquele episódio. Todas tínhamos uma história semelhante, mas à qual não tínhamos respondido e sabe-se lá porquê, talvez porque não valia a pena. Contudo, para a Rita, vale sempre a pena!
A Rita tem feito um ótimo trabalho comigo, tenho feito enormes progressos e graças a ela agora só demoro sete anos a resolver as minhas merdas.
Mas o trabalho dela comigo tem sido menos penoso porque não é solitário, e por isso agradeço a todos os meus amigos, aos lugares físicos e imateriais, ao calçado, à falta de noção e de vergonha, aos livros, à música, à natureza, a tudo o que me/nos inspira e acompanha nesta fuga diária.
P.S. Hoje é o dia da Rita! Parabéns à Rita! God save Rita!!!!